"Linda Flor" ou "Ai Ioiô".
O nascimento de um gênero musical

Em 1928 Henrique Vogeler (Henrique Gypson Vogeler, 1888-1944) compôs uma bela música que logo chamou a atenção. Compositor, arranjador e maestro de formação clássica, Vogeler era conhecido e prestigiado no meio musical carioca desde 1910. Compunha muito para as Burletas, Comédias Musicais e para o Teatro de Revista, além de produzir arranjos e reger as orquestras nos espetáculos da Praça Tiradentes. Um clássico da MPB e um novo gênero musical estavam nascendo e ele não sabia.

A primeira letra que recebeu foi escrita por Cândido Costa com o título de "Linda Flor" para a revista "A verdade do meio-dia", do escritor argentino J. G. Traversa. A letra rebuscada não emplacou. 

Linda Flor (Henrique Vogeler/Cândido Costa)

"Linda flor,

Tu não sabes, talvez,

Quanto é puro o amor,

Que me inspira; não crês...

Nem

Sobre mim teu olhar

Veio um dia pousar!...

E ainda aumenta a minha dor,

Com cruel desdém!

Teu amor

Tu por fim me darás,

E o grande fervor

Com que te amo verás...

Sim

Teu escravo serei,

E a teus pés cairei

Ao te ver, minha enfim.

Felizes então, minha flor

Verás a extensão deste amor

Ditosos os dois, e unidos enfim

Teremos depois só venturas sem fim!"

Algumas fontes sugerem que o próprio Vogeler não teria ficado satisfeito com o resultado. De fato, a qualidade da letra é bastante inferior à música e não favorece muito a beleza de sua linha melódica. Cante aí e confira. Talvez por iniciativa de Vogeler, a música foi oferecida a outro conhecido letrista, o escritor do Teatro de Revista Freire Jr, que escreveu nova letra e rebatizou a canção para "Meiga Flor"

Meiga-Flor (Henrique Vogeler/Freire Jr.)

Meiga flor,

Não te lembras, talvez,

Das promessas de amor,

Que te fiz, Já não crês...

Se Queres me abandonar

Procurando negar

Que juraste a mim também

Minha ser, meu bem...

Meu amor

Por que negas, ó flor,

Sempre fui tão sincero,

Eu te quis, eu te quero...

Sei que sem ti morrerei.

És o meu ideal Minha vida, afinal."

A letra de Freire Jr é superior à de Cândido Costa, mas a nova versão não obteve resultado melhor que a anterior. O público não deu muita atenção. No entanto, ambas foram gravadas. A primeira, com letra de Cândido Costa, por Vicente Celestino. E a versão de Freire Jr, com o título "Meiga Flor", por Francisco Alves. Discos lançados no início de 1929. É interessante registrar que Henrique Vogeler também era letrista, mas não consta que tenha tentado ele próprio criar uma letra para sua composição.

Mas, ainda em 1928, a música de Vogeler volta ao teatro de revista e se encontra com Aracy Cortes na peça "Miss Brasil", que estreara no Teatro Recreio. Nessa época Aracy era a grande estrela do nosso teatro popular, ao lado de Margarida Max. Era temperamental, brigona e muito ciosa do que seu público esperava dela nos palcos. Aracy não gostou das letras escritas por Cândido Costa e Freire Jr. Talvez não combinasem com sua personalidade artística. É possível também que tenha rejeitado a idéia de cantar música já lançada e que não fizera sucesso em duas versões diferentes. Como toda estrela, queria algo novo para cantar. Exigiu e obteve dos autores da peça, a parceria Marques Porto/Luiz Peixoto, uma nova letra. Deu certo. A mão enfim encontrou a luva, ou vice-versa. "Ai, ioiô eu nasci pra sofrê/Fui oiá pra você/ Meus oinho fechô/E quando os óio eu abri/Quis oiá, quis fugi" etc etc. Letra simples, singela, emotiva, com palavras e versos curtos e sonoros, fáceis de memorizar e que amparam e falicitam a expressão melódica da inspiradíssima composição de Henrique Vogeler. O sucesso foi imediato. De público e de crítica. O povo saiu do teatro cantarolando a música.

Acabava de nascer o Samba-canção, gênero que seria dominante nas três décadas seguintes até o surgimento da Bossa Nova. "Ai Ioiô" foi gravada por todas as nossas grandes cantoras (Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Zezé Gonzaga, Elis Regina, Maria Bethânia etc). A bossa nova a incorporou na versão de João Gilberto. Recebeu incontáveis versões instrumentais e os intérpretes da geração atual também se sensibilizam com ela. Apesar da letra de estilo quase datado e regional, "Ai, Ioiô" se transformou numa canção universal e eterna.  

O nome "Linda Flor" (dado por Cândido Costa) voltou na gravação feita por Aracy Côrtes no final de 1928 pela gravadora Parlophon-Casa Edison e lançada em março de 1929. Mas, na bolacha 78rpm e nas partituras vendidas nas lojas -portanto registradas- apareceram os nomes "Yayá" e logo depois "Ai, Ioiô". Por que? Provavelmente para afastar Cândido Costa da nova parceria para a música de Henrique Vogeler, onde ele entraria apenas pela autoria do título. 

Dois anos depois, a música recebeu uma quarta letra. Dessa vez, uma letra escrita por Nelson de Abreu para um quadro cômico da revista "Miss Favela". Não passava de uma paródia, um intencional e duplo blague -com a letra da música já então famosa e com o nome da peça ("Miss Brasil") em que a música fora lançada. Foi gravada em 1930 na mesma Casa Edison pelo ator-cantor Pinto Filho com o título "Miss favela". Foi naturalmente esquecida. A versão brincalhona foi permitida pela Casa Edison, a quem Henrique Vogeler cedera os direitos sobre a melodia. Espertamente, a gravadora assinou termos de cessão em separado para cada letra. Mas a "criação" de Nelson de Abreu foi recebida com iradas espinafrações pelos outros parceiros, Luiz Peixoto e Marques Porto. 

Resumindo, existem quatro versões iniciais, gravadas entre 1928 e 1930, por quatro intérpretes, com quatro letras e quatro títulos diferentes para a mesma música composta por Henrique Vogeler. Apenas uma sobreviveu. A revolucionária e hoje clássica "Linda Flor" ou "Ai, Ioiô". Uma canção que enfrentou tortuoso parto e só nasceu quando encontrou sua primeira grande intérprete, Aracy Côrtes, a quem se deve a iniciativa de exigir uma terceira letra para a música e cujo nome, por isso mesmo, deveria com méritos constar da parceria.

Henrique Marques Porto   

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