Theatro Municipal do Rio de Janeiro: muito brilho, pouco som



Reforma milionária do Theatro Municipal danificou acústica

O sempre atento amigo Oscar Peixoto chama atenção para matéria publicada pela revista Piauí sobre a reforma milionária do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, reaberto ao público com muita festa, pompa e circunstância no ano passado.

A opinião geral é que o teatro centenário "ficou lindo". Mas a matéria da revista, assinada por Cristina Tardáguila, prova que nem tudo o que é bom para os olhos é bom para os ouvidos.
No "restaurado" Municipal (as aspas são necessárias porque muita coisa foi mudada mesmo) voltaram a brilhar os mármores, os bronzes e os ouros. Já o som, este foi-se!  
“-Isso aqui é um aspirador de som!” -teria bradado um músico num ensaio, referindo-se à concha acústica instalada no fundo do palco.
Vida difícil também para os cantores líricos que precisam se esgoelar para serem ouvidos, como contam o tenor Fernando Portari e a soprano Rosana Lamosa, que chegou a ficar doente depois de cantar a ópera "Romeu e Julieta", de Charles Gounod.
Durante a reforma ninguém deu bola para a acústica do teatro, uma das melhores do Brasil. As prioridades eram outras. Afinal, que relevância teria essa tal de acústica para uma casa de ópera e concerto?
Essa parte sombria e feia da história da reforma, que mistura desleixo, incompetência e irresponsabilidade está bem contada na excelente matéria da Piauí.
Apesar de tudo, e estranhamente, Carla Camurati e sua equipe parecem prestigiados pelo Governo Estadual e seguem comandando a Fundação Theatro Municipal.
Selecionei alguns trechos da matéria de Cristina Tardáguila. Vale a pena conferir a íntegra.
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Som e Silêncio
Dissonâncias Municipais
Ao ser reformado, o Municipal do Rio ganhou um piso de madeira reluzente, poltronas de veludo bois de rose fermé, um novo maquinário cênico e um teto que já não corre o risco de cair* em cima da platéia. Os músicos e cantores continuam infelizes.


"Embora faltasse apenas uma hora para o início da apresentação da Orquestra Filarmônica de Munique, os 117 músicos ainda não haviam iniciado o único ensaio geral previsto para aquela récita. Naquela noite, 29 de setembro, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro – reabertoquatro meses antes, depois de dois anos e meio fechado para reformas –receberia um dos grandes personagens da música erudita internacional, omaestro indiano Zubin Mehta. No programa, obras de Giuseppe Verdi, Max Bruch e Gustav Mahler.

Mehta, de 74 anos, se atrasara trinta minutos devido ao trânsito. Ao sair do camarim, reclamou do calor e da falta de ar-condicionado. Do proscênio, virou-se para trás e encarou a concha acústica montada no fundo do palco – uma enorme estrutura de madeira que vai do chão aoteto. Intrigado, escrutinou os spots que formavam uma constelação de luzes sobre sua cabeça e notou as poltronas de veludo bois de rose fermé.

“Mudaram as cores, não foi?”, perguntou em inglês a um dos organizadores do concerto, que balançou a cabeça afirmativamente. Mehta é um velho conhecido do teatro. Desde 1982, já regeu ali inúmeros concertos.Terminada a inspeção, cumprimentou os músicos em alemão, ergueu os braços, produziu o silêncio e, segundos depois, a música.

Passados vinte minutos, interrompeu o ensaio e pediu ao clarinetista László Kuti, sentado na penúltima fileira, embaixo da concha acústica, que projetasse mais o som. O rapaz de 28 anos pareceu desconcertado, mas
reagiu rapidamente ao pedido. Encerrado o breve ensaio, o maestro foi para seu camarim.

No caminho, Mehta comentou: “Os instrumentos da seção de madeira –principalmente o clarinete e a flauta – estão muito fracos. Não sei explicar.” E completou, grave: “Os músicos estão tocando como sempre tocam, mas não conseguem ter muita presença. A concha acústica está diferente. Precisa de ajustes. Os instrumentos de corda, por outro lado, soam bem, muito bem.”

Duas semanas depois, no mesmo palco, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, apresentaria a 3a Sinfonia de Mahler sob a regência do maestro nicaraguense Giancarlo Guerrero. Durante os cinquenta minutos
de ensaio, Guerrero parou os músicos várias vezes pedindo que acelerassem o andamento e tocassem com mais vibrato, não só para valorizar a expressividade das notas, mas para sustentá-las por mais tempo. A sala parecia seca – os sons morriam com rapidez, como se engolidos pelo ar.

Intrigado, o percussionista paulista Eduardo Gianesella – que também percebera que algo não estava direito – resolveu investigar. Perguntou aos colegas da orquestra se também haviam notado a falta de
reverberação, o pouco retorno. Sim, a sensação era de todos.

Foi quando resolveu examinar a concha acústica. Com o nó dos dedos fez toc-toc na madeira e, intrigado, pediu ao montador da orquestra um desses canivetes que só faltam falar. Abriu uma reguinha e mediu a espessura da concha: quatro milímetros, quase nada. “Isso aqui é um aspirador de som!”, teve vontade de gritar. Inaugurado em 14 de julho de 1909, o Municipal foi durante décadas uma das melhores salas de concertos do país. Em seu palco, apresentaram-se Maria Callas, Arturo Toscanini, Heitor Villa-Lobos, Igor Stravinski, Arthur Rubinstein e Rudolf Nureyev, entre tantos outros artistas que definiram o século passado. (...)

Na noite de 18 de setembro, o Municipal estava lotado para a estreia da ópera Romeu e Julieta, de Gounod, dirigida por Carla. Os protagonistas eram a soprano Rosana Lamosa e o tenor Fernando Portari – marido e mulher fora dos palcos.

Durante os ensaios, os dois haviam enfrentado a baixa reverberação do som. Engrossavam também o coro dos descontentes com a nova cortina de veludo que agora corria por trás da última fileira de poltronas da platéia. Tinha sido instalada no local para esconder a parede dos fundos, onde, antes da obra, ficavam os comandos de luz e som. “Mas foi só quando entrei para cantar que percebi que a Carla tinha posto um carpete no palco inteiro. O carpete é uma das coisas que mais absorve som no mundo”, lembrou Rosana Lamosa, na sala de sua casa. “Foi uma abafada violenta!”

No quarto ato, os protagonistas cantaram por quase cinquenta minutos deitados no fundo do palco. A sensação foi de derrota. “Não havia nada que mandasse a voz para a frente. O cenário estava todo aberto. Não havia concha delimitando o fundo do palco e devolvendo o som para a plateia. Ficamos vendidos”, disse a soprano. No dia seguinte, ela caiu doente.

Rosana explica que qualquer pessoa do universo musical sabe que não há cantor capaz de vencer uma acústica desfavorável com a voz. Pelo contrário. Um bom profissional deve evitar toda tentativa de compensação para não correr o risco imenso de distorcer o som que sai de seus pulmões. “Uma das grandes frases dos professores de canto é: ‘Nunca cante com o seu capital, cante sempre com seus juros.’ Em Romeu e Julieta, eu cantei com o capital o tempo inteiro”, lamentou Rosana. (...)

Em outubro de 2007, a atriz e cineasta Carla Camurati foi chamada por sua amiga Adriana Rattes, nomeada meses antes secretária de Cultura do estado, para assumir a Fundação Theatro Municipal. Tanto Rattes – sócia de uma rede de salas de cinema – quanto Camurati não tinham experiência na administração pública.

Aos 50 anos, Carla Camurati dirigiu filmes e óperas. Atribui-se a ela um papel relevante na chamada “retomada” do cinema nacional – no início dos anos 90, o filme Carlota Joaquina, produzido e dirigido por ela, foi visto por cerca de 1 milhão e 300 mil espectadores. Como atriz, atuou em mais de vinte filmes e dezenas de novelas. É também
responsável pela direção cênica de cerca de dez óperas, como O Barbeiro de Sevilha e Madame Butterfly.

Diretores que assumem grandes salas internacionais de concerto geralmente possuem experiências mais ricas dentro do mundo da música erudita. Pedro Caffi, do Teatro Colón, por exemplo, é barítono e maestro. Antes de assumir o cargo, dirigiu a Camerata Bariloche e a Filarmónica de Buenos Aires. Nicolas Jöel, da Ópera de Paris, esteve por quinze anos à frente do Théâtre du Capitole de Toulouse. Peter Gelb, do Metropolitan Opera House, de Nova York, foi presidente da divisão americana da Sony Classical Records. Talvez por isso o convite para administrar o Municipal do Rio tenha pego Carla de surpresa. Ela ficou tão aturdida que demorou três dias para falar da proposta com o marido, o cineasta João Jardim. (...)"
Continua em http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-51/som-e-silencio/dissonancias-municipais/







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