Teatro de Revista e Política




O teatro de revista não era feito apenas de quadros cômicos, atrizes bonitas, vedetes sensuais, canções e números de cortina para as girls. Nas revistas dos anos 20 e 30 do século passado a sátira política era um elemento importante e indispensável aos espetáculos da Praça Tiradentes no Rio de Janeiro. Aqueles foram tempos de revoltas, insurreições, levantes armados, turbulências e golpes de estado. Os escritores do Teatro de Revista documentaram tudo. Com humor, é claro. Tanto que é até possível contar a história política daquele período através de peças e canções.
Marques Porto (1897-1934) escreveu para o teatro de revista nessa época.  Autor de mais de 100 peças, entre Burletas, Comédias Musicais e Revistas com vários parceiros era também Sub-Inspetor da Polícia Marítima. A chamada “Revolução de 1930” encontrou-o dando plantão nos momentos mais dramáticos do golpe. Viveu, então, a ironia de ter que conduzir numa lancha até o navio que o levaria para o exílio o deposto presidente Washington Luís, uma das mais frequentes vítimas de suas piadas no teatro e prato cheio para os chargistas e humoristas da época. Dois anos depois o alvo das piadas era o chefe do novo governo, Getúlio Vargas. 
Em Uma Tragédia Sentimental, de 1932, provavelmente um esquete para alguma peça, o pano de fundo é a Revolução Constitucionalista e o personagem principal é Getúlio, flagrado pelo revistógrafo na ambiguidade e esperteza políticas que ficariam famosas nos anos seguintes.  Os outros personagens são Oswaldo Aranha, José Américo de Almeida e Espírito Santo Cardoso, os homens que ocuparam o centro do poder a partir de 1930. Os mencionados Klinger, “cavanhaque” e “cardeal” são, respectivamente, Bertoldo Klinger, chefe militar da Revolução Constitucionalista, W. Luiz e o Cardeal D. Sebastião Leme, Arcebispo do Rio, que intermediou as negociações entre os golpistas e o governo deposto de Washington Luís e acompanhou o ex-presidente quando este deixou o Palácio do Catete.
Não consegui identificar a que Revista pertenceria. O mais provável é que, por uma razão ou outra, o texto não tenha sido aproveitado por Marques Porto. O pequeno quadro de humor mostra a atenção que os revisteiros davam à sátira política. Quase sempre esses textos eram alvo dos censores ou excluídos pela auto-censura. É possível que tenham sido eles os responsáveis pelo descarte -se é que foi mesmo- dessa "Uma Tragédia Sentimental", que transcrevo abaixo mantendo a ortografia original.
Uma Tragédia Sentimental. (em um acto)
de Marques Porto
(A scena passa-se no Palácio Guanabara, quarto do ditador. Está presente e reunido todo ministério.
Getúlio - O Klinger já chegou?
Aranha - Ex. ainda não mas não deve demorar
Getúlio - O que diz?
Aranha - Não deve demorar um mez a dictadura estará em situação segura  
Getúlio - Também dizia o mesmo o Vianna do Castello
O governo está firme e sorria amarello
Até que de uma feita estoura a bachanal
E o cavanhaque lá se vae as mãos com o Cardeal
E dizer e pensar que desta vez é comigo
Ah...mas eu hei de enfrentar o perigo
E demonstrar que estou a altura do meu posto...
Dizem que sou xuxú mas hão de ver o meu gosto
Hei de tomar já e já medidas extremistas!  (faz menção de sair)
Aranha - Ex., aonde vai?
Getúlio - Adherir aos paulistas!
Américo - Mas, isto é loucura!
Getúlio - Viva a revolução...Abaixo a ditadura...  
Eu tenho que aderir, a coisa não está boa  
Eu não quero ter o fim que teve o João Pessoa  
(bate duas vezes na cama)  
Aranha - Dizer que o ditador é um poltrão desta marca...
Getúlio - Qual ditador, qual nada! Eu sou é da fuzarca!
Ser chefe do Brasil só não é golpe errado
Si Minas e Rio Grande estão do nosso lado!
Toma-se Itararé sem tiros pelo lombo,
Como quem toma chá das cinco na Colombo
É bastante gritar abaixo a Tyrania
Para o povo correr gritando de alegria
Enfrentar a sorrir o canhão que reboa
Aos accordes trimphaes da marcha João Pessoa
(bate novamente na cama.  
Mas agora o soldado assim que em armas pega
Vae para o front cantar O Teu Cabello Não Nega!
E diz: se por acaso houver atraso no soldo
Si o governo não paga eu adhiro ao Bertholdo  
Aranha, eu vou!
Aranha- Não
J. Américo- Teremos que o prender para não adherir
Getúlio- Larguem-me, eu grito, eu berro
Aranha- Está preso
Getúlio- Si eu tenho que ficar aqui mesmo é que eu morro...  
Socorro!  
(Os ministros correm para agarral-o)  
Prompto já não vou...não vou mais...não adianta gritar  
Que posso fazer, só me resta ficar...  
Juro não adherir às forças do Isidoro  
Fico, mas um favor ao menos eu imploro...  
Promettem consentir?...
Aranha- É justo
E. Santo- É natural
Getúlio- Deixem-me empastellar sozinho o Radical!  
 
(Cahe o panno e a Dictadura)

Comentários

  1. Se foi descartada pela censura, externa ou interna, e de qualquer forma então mordaça, a "Uma Tragédia Sentimental", de 1932, do querido Marques Porto, agora está publicada e reverenciada por outro Marques Porto de coração memorialista, descortinando sem dúvida a alma política e crítica da sátira do Teatro de Revista, como uma outra ferramenta para se estudar e entender o poder político do Brasil de então. Os diálogos imaginados (ou "captados"?!) são muito engraçados e inteligentes. E a sátira colada à pele da própria existência dos autores?! Esse mistério rasgou o oceano.

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